Diante da guerra travada no Oriente Médio desde outubro de 2023 entre Israel e o grupo Hamas, a presença do país em eventos internacionais tem sido questionada por conta da brutalidade desproporcional entre um lado e outro. O conflito recente, na verdade, é apenas mais um capítulo de uma longa história de batalhas entre israelenses e palestinos.
O festival Eurovision, que será realizado em maio deste ano, é nosso assunto principal desde a criação do portal em 2019; e no momento é um dos locais de onde mais surgem pedidos para um boicote a Israel, já que o evento é visto como uma oportunidade de promoção do país para uma audiência de mais de 160 milhões de pessoas. A ocasião pede posicionamento (e nós temos um): o melhor para todos os lados envolvidos seria o banimento de Israel da competição.
Visão editorial do Koli: não cancelamos países
Apesar do enfoque centralizado em coberturas sobre o Eurovision, o Kolibli surgiu como um site que busca pautar música popular do mundo todo. A ideia sempre foi contrastar a lógica repetitiva que coloca os Estados Unidos e o seu circuito midiático no centro das atenções. Entendendo a complexidade não só de questões políticas, mas também do comportamento humano, com bom senso o Koli sempre descartou discriminações por conta de nacionalidade, posicionamento político, ou qualquer outro tipo de questão. Por exemplo, quem acompanha as nossas listas de fim de ano pode perceber que países como Estados Unidos, Rússia (ou o próprio Israel) sempre estiveram presentes independentemente do que os seus artistas pensam, como é o caso de Polina Gagarina, vice-campeã do Eurovision em 2015, e uma das artistas mais vocais no apoio ao regime do presidente russo Vladimir Putin.
Acreditamos que problematizar é melhor do que excluir, pois é fácil cair em uma teia interminável de hipocrisias. Encorajamos cada leitor a fazer o seu próprio julgamento, pois cada pessoa tem seu próprio código moral. Nós ouvimos milhares de artistas todo ano e seria impraticável fazer um ‘check-up dos bons costumes’ em cada um. Como disse Mano Brown em uma icônica frase (“depois que inventaram a desculpa, nunca mais ninguém morreu”), os papeis de vilão e mocinho mudam a todo momento no jogo do entretenimento. Por isso, reiteramos que é melhor discutir caso a caso e propor para a audiência um debate sobre os eventuais equívocos de cada pessoa (dos menores até os criminosos).
E Israel no Eurovision?
Como a situação apenas envolve a participação de um país no festival, somos favoráveis a este ‘cancelamento’ por alguns motivos.
O primeiro de todos é o uso do festival como propaganda política, motivo que por si só renderia uma exclusão do festival de acordo com as regras. No HaKokhav HaBa, seletiva nacional do país deste ano, jurados e participantes apareceram vestidos em uniformes militares (vídeo impossível de encontrar, mas aconteceu). A emissora pública Kan, responsável pelo Eurovision em Israel e associada à EBU (União Europeia de Radiodifusão, que supervisiona todo o festival), pode se esquivar dizendo que a produção e distribuição do evento é responsabilidade da Keshet, um canal privado do país, e que a Kan só escolhe a música a ser enviada.
As evidências, entretanto, indicam o contrário, como apontado pelo perfil no Twitter/X Israel Breaks Rules. A Kan tratou várias vezes o conflito de forma parcial e até debochada, como neste vídeo em que assinam um míssil com o nome da emissora e tratam a situação com descontração. A Kan também convidou a dupla Ness e Stilla, que fez o atroz hit “Harbu Darbu”, para cantar em suas dependências. Na música, que foi número #1 nas paradas em Israel, os artistas glorificam as Forças Armadas, dubiamente falam que “os ratos saíram dos túneis” (guerrilheiros do Hamas ou os palestinos?), e clama pela morte de Bella Hadid e Dua Lipa, personalidades que se voltaram contra as ações do país. O pior, entretanto, talvez seja esse vídeo que mostra crianças israelenses cantando que irão “aniquilar todos em Gaza”.
Israel tem a certeza da impunidade na própria subjetividade das regras e valores da EBU e do festival. O que seria infringir a “excelência” ou a “independência”, por exemplo? Qual a linha que define o legal e o que não é? Podemos usar o caso da Geórgia e a desestabilização gerada no país pela guerra com a Rússia em 2008. A nação de Putin sediaria o festival no ano seguinte, sem problemas, com até demonstrações militares na abertura do show. Indo ao lado ocidental geopolítico, o envolvimento do Reino Unido na Guerra do Iraque, nação que está na zona da EBU, foi ainda mais irrelevante para o prosseguimento do país no festival.
Como tudo que envolve grandes eventos continentais (ou até globais), isonomia não é bem a primeira das prioridades. Talvez nem seja uma. Um evento como o Eurovision tem necessidades mais urgentes, como dinheiro para existir e de um bom número de participantes. Por conta disso, o Reino Unido dificilmente será incomodado pela sua política externa já que é membro do Big 5 (clube dos que mais contribuem financeiramente). A própria Rússia, que foi o primeiro país a ser praticamente “chutado” em conjunto do festival, só foi suspenso após a pressão internacional se tornar insustentável por conta da invasão na Ucrânia (país associado e que faz parte da Zona da EBU) em 2022. Para defender Israel em circunstâncias parecidas, onde se cria um sistema análogo ao apartheid na Faixa de Gaza e nos territórios palestinos (que também estão na zona da EBU), a mesa executiva capitaneada por Martin Österdahl teve a audácia de dizer em comunicado que o Eurovision “não é uma competição entre governos, mas sim emissoras”. Para dar um exemplo, seria como dizer que se o Brasil estivesse no festival, as pessoas estariam votando na TV Globo (e não no Brasil). O pau que bateu nos russos com a infame palavra “disrepute” (descrédito), usada no comunicado feito pela EBU para justificar a saída da Rússia do festival, não bate nos israelenses.
Belarus, que foi banida em 2021 por acusações de interferência governamental na emissora BTRC, talvez se pergunte: o que fizemos de errado? Claro que as circunstâncias são diferentes, já que esta foi uma reação ao esfarelamento da democracia bielorrussa, mas a Kan e o regime de Benjamin Netanyahu parecem uma coisa só. Pessoas ligadas ao evento, como membros do júri da seletiva nacional e compositores, deixaram evidente que Israel usaria a música como propaganda de guerra.
Se a Rússia foi banida por gerar descrédito ao festival e Belarus por falta de imparcialidade e independência na emissora associada, o que podemos fazer com Israel, que infringe as duas coisas?
E então, o motivo principal
Levando em consideração a falta de equidade na EBU, vamos ao segundo e motivo mais importante para a exclusão de Israel do festival: não há clima. Parece clichê e delusional, mas um festival sobre música está vendo o seu foco todo ser dispensado em discussões sobre Israel. Não entenda isso como um pedido egoísta e desumano para que “israelenses e palestinos briguem longe da gente”. Seria até o contrário, já que países como Armênia e Azerbaijão frequentemente entram em guerra e participam do Eurovision mesmo assim. O fato é que só temos visto um massacre desproporcional de um dos lados, e os atingidos não têm espaço para devolver uma tentativa de artwashing vinda de Israel. Em uma nação que mal existe e que mal conta hoje com o mínimo de dignidade, como no visto no ultrajante caso da mulher que fez uma amputação sem anestesia, entrar no Eurovision não parece um pensamento que passe por um segundo pela cabeça dos palestinos.
A maioria dos fãs do festival visivelmente está do lado dos palestinos e invadem, diariamente, todos as redes sociais do Eurovision com pedidos de boicote. O ódio escala até a emissora Kan e também afeta a representante Eden Golan, que passa longe de ser inocente, em um momento que deveria ser especial com foco no que interessa: a música.
É preciso lembrar também que o clima de hostilidade não se restringe aos meios online. O Eurovision com certeza vai passar pelo maior teste de segurança em toda a sua história. Apesar de ser um evento de ponta, o festival não é Jogos Olímpicos ou Copa do Mundo. Preocupa pensar se a cidade de Malmö (ou qualquer outra) está preparada para receber em menos de dois meses uma delegação israelense nesse contexto e assegurá-la integridade física. A Kan já sabe disso e, inclusive, publicou um vídeo mostrando como a cidade de Malmö foi “tomada pelo antissemitismo” usando retóricas preconceituosas contra muçulmanos. Com a crescente islamofobia na Europa, é de se temer que a violência escale para além do vandalismo, como ocorreu com pôsteres do festival na semana passada. Se tudo correr bem, o máximo que Eden Golan vai sentir serão as eminentes vaias do público como acontecia com a Rússia, mas planejar requer pessimismo e pensar que o pior pode acontecer.
Gostaríamos de lembrar também que o Koli, como sendo um site feito por brasileiros e para brasileiros, se preocupa com a segurança dos compatriotas que devem ir aos shows e eventos do Eurovision.
Plano de cobertura para Israel
Como justificamos ao longo do texto, acreditamos que Israel deveria ser excluído do Eurovision 2024, mas até a data desta publicação isso está longe de acontecer. Por não concordar com essa participação e para diminuir o impacto de uma entrada que busca distrair os europeus do massacre que fazem em Gaza (ou distorcer as histórias), o Kolibli vai reduzir a cobertura no limite do possível.
Confira como vai funcionar:
- Não publicaremos novidades ou trivialidades sobre a canção de Israel. Também não vamos entrevistar a cantora de Israel ou produzir conteúdo especial potencialmente positivo sobre a canção. Também evitaremos a publicação de memes e piadas sobre a participação, mesmo que sejam depreciativas.
- Israel seguirá sendo mencionado apenas no indispensável, como posts no site antecipando quem estará no festival e os resultados no Eurovision, incluindo uma possível vitória;
- Caso consigamos credenciais para o Eurovision, não publicaremos informações sobre os ensaios. Comentários ao vivo durante as performances televisionadas poderão ser feitos (ao critério de cada jornalista);
- A música de Israel permanece na playlist feita pelo Koli no festival pois a música é uma competidora, mas encorajamos a audiência a “bloquear” a artista no Spotify caso queiram, pois assim a canção some de qualquer lugar do aplicativo (incluindo a playlist);
- Por fim, Israel está fora do Conselho Eurovisivo Brasileiro. Apesar de ser uma simulação de como seria caso o Brasil estivesse no Eurovision (portanto, Israel poderia ser votada), vamos evitar a possível ocorrência de troll voting e trazer para o público brasileiro uma polarização já experimentada no exterior.
O Kolibli se solidariza com as vítimas inocentes de cada lado do conflito, mas também se posiciona em favor do direito de existência do povo palestino, que sofre com tentativa de limpeza étnica desde a criação do Estado de Israel.
Editorial assinado por toda a equipe do Kolibli.