Com a chegada de mais uma temporada do Eurovision, precisamos ter uma conversa (ou melhor, uma nova conversa) mais longa com nossos seguidores e leitores sobre alguns tópicos importantes que não podem ser ignorados. O último exemplo é a publicação do nosso posicionamento editorial sobre a participação de Israel no festival em meio a sua “guerra” contra o grupo Hamas e os nossos procedimentos jornalísticos a respeito disso (leia aqui).
O Kolibli vem a público reiterar a sua posição contrária à participação de Israel no Eurovision, mas também explicar o que nos motiva a repetir o mesmo posicionamento do ano passado, bem como esclarecer como faremos a cobertura do que acontece com o país no festival. Entretanto, dessa vez abordaremos também uma questão que sempre surge quando se discute o boicote a Israel: e o Azerbaijão? Afinal, o país do Cáucaso está em guerra com a Armênia há décadas e forçou uma crise humanitária de larga escala na região disputada de Nagorno-Karabakh em 2023. O “cancelamento casado” é justo, e encorajamos todos os nossos leitores a fazerem a sua pesquisa e tirarem suas próprias conclusões, mas acreditamos que a situação é outra.
Por fim, também vamos aproveitar para anunciar nossas diretrizes sobre o uso de inteligência artificial nas diversas produções do Koli (especialmente, textos). Seguindo uma tendência nacional e internacional de uso inteligente das tecnologias, nós também gostaríamos de informar que os nossos editores estão autorizados a usar essas ferramentas, mas existem condições (e você pode conferir elas logo abaixo).
Leia também: Editorial – Israel precisa ser banido do Eurovision 2024
O que achamos da participação de Israel e o que muda na cobertura?
A nossa postura em relação a Israel não se modificou: ainda acreditamos que o país não deveria ter espaço no Eurovision. Os motivos também segue sendo os mesmos: enquanto o país proporciona limpeza étnica e condições de vida análogas às de um apartheid para os palestinos, situação amplificada pela guerra desde 2023, a emissora pública KAN investe dinheiro para fazer com que o Eurovision jogue debaixo dos panos, ou pelo menos tente, os crimes de Israel frente ao mundo. A instrumentalização do festival em torno disso vai contra as regras e valores do Eurovision.
Há uma impressão de que as coisas tenham melhorado por conta do cessar-fogo que durou dois meses, mas as ofensivas voltaram com tudo na semana passada. Os israelenses dizem que o Hamas matou 1200 pessoas e tem 250 pessoas como reféns. Já os palestinos reportam mais de 50 mil mortes, sendo setecentas delas apenas desde a última terça (18). Os números chocam, ou deveriam, mas eles não dão conta do número de feridos, torturados e refugiados, que deve ser exponencialmente maiores do que esses.
É por isso que a escandalosa propaganda que Israel fez em 2024 se repete em 2025 com a escolha de Yuval Raphael. A cantora esteve presente no massacre do Nova Festival, acontecimento que fez parte de outras ofensivas do Hamas no sangrento 8 de outubro de 2023. Apesar da música deste ano, chamada de “New Day Will Rise”, ser menos ‘cara de pau’ em torno do tema do que “Hurricane”, o clima de tributo da canção é uma catapulta para a presença de Yuval, que não precisa falar muito: se todos os comentaristas, quando anunciarem a performance dela ao vivo, se referirem a ela como uma sobrevivente, o seu objetivo foi concluído. E que fique claro: não comemoramos ou achamos bonito o que aconteceu com Yuval ou com as outras pessoas inocentes atingidas no conflito, mas precisamos compreender esses acontecimentos não como uma mera fatalidade causada “por pessoas ruins”, mas sim reações de regiões em guerra.
O Kolibli reitera também sua posição em torno do “cancelamento inteligente”, que também foi abordado com maior detalhamento no editorial do ano passado. Não excluímos artistas ou países por conta de deslizes, posicionamentos ou erros, já que o mercado musical não é conhecido por ser um exemplo de humanidade. Entretanto, isso não significa passe livre para que se finja que nada está acontecendo. Enquanto o cancelamento irrestrito gera um policiamento mental desnecessário e impraticável, o “perdão” sem limites também é errado e despolitizante. Isso é algo que já vimos nesse ano com a normalização da participação de Israel, que muito ganha força no discurso de que “já que você assiste Eurovision, tem sangue nas mãos também“ – como se fosse impossível um consumo crítico do festival.
E o Azerbaijão?
Acreditamos que algumas coisas separam o caso de Israel do que acontece com o Azerbaijão. Em primeiro lugar, a guerra pela região de Nagorno-Karabakh entre Azerbaijão e Armênia tem quase quatro décadas, mas acontece entre dois países soberanos que participam ativamente do festival, algo que a Palestina hoje nem teria direito de sonhar, com uma autonomia completamente cerceada, mesmo estando na zona de cobertura da EBU (União Europeia de Radiodifusão). Vale destacar também, que ainda que pareça surreal, Armênia e Azerbaijão estão negociando um acordo de paz no momento.
Um outro motivo que diferencia os dois casos é a instrumentalização do festival, que Israel faz de forma descarada, mas o Azerbaijão praticamente abandonou. Cada vez mais enfraquecido no evento que um dia já foi potência, o interesse em usar o evento como plataforma, que é o que aconteceu em 2012, caiu. Agora, as músicas enviadas pelo país têm sido despidas de simbolismos de qualquer forma, sejam positivos ou controversos, e mal passam da semifinal. O Azerbaijão não se classifica para a final do Eurovision desde 2022 e teve apenas um top 10 nos últimos dez anos.
A canção deste ano não parece ter ‘significados obscuros’; e tampouco soa como uma candidata ao título do festival, figurando hoje (24) em 26° no ranking agregado das casas de apostas.
Protocolo de cobertura de Israel em 2025
As nossas diretrizes serão as mesmas de 2024. Confira como vai funcionar:
- Não publicaremos novidades ou trivialidades sobre a canção de Israel. Também não vamos entrevistar a cantora de Israel ou produzir conteúdos especiais potencialmente positivos sobre a canção. Também evitaremos a publicação de memes e piadas sobre a participação, mesmo que sejam depreciativas.
- Israel seguirá sendo lembrado apenas no indispensável, como posts no site antecipando quem estará no festival e os resultados no Eurovision, incluindo uma possível vitória;
- Caso consigamos credenciais para o Eurovision, não publicaremos informações sobre os ensaios israelenses. Comentários ao vivo durante as performances televisionadas poderão ser feitos (ao critério de cada jornalista);
- A música de Israel permanece nas playlists feitas pelo Koli para o festival, afinal a canção é uma competidora, mas encorajamos a audiência a “bloquear” a artista no Spotify caso queiram, pois assim a canção some de qualquer local do aplicativo (incluindo a playlist);
- Por fim, Israel está fora do Conselho Eurovisivo Brasileiro mais uma vez. Apesar de ser uma simulação de como seria caso o Brasil estivesse no Eurovision (portanto, Israel poderia ser votada), vamos evitar a possível ocorrência de troll voting e trazer para o público brasileiro uma polarização já experimentada no exterior.
Inteligência artificial
O uso de inteligência artificial (IA) nos tempos atuais já é uma questão quase superada, mas pode acontecer um certo preconceito quando se fala no uso da ferramenta para o jornalismo. Frisemos bem a última frase: uso de ferramenta. A IA jamais poderá substituir um ser humano, que é dotado de criatividade e subjetividade.
Se grandes veículos como o The New York Times ou conglomerados como o Grupo Globo já usam a inteligência artificial nas redações, por que uma equipe reduzida (e ocupada) como a do Koli não usaria? Quando se fala em jornalista usando IA, se pensa em um cara abrindo um site, enviando um prompt de comando e dizendo para ele “inventar uma notícia”, o que não é verdade – ao menos aqui, onde se leva a sério o que informamos aos nossos seguidores e leitores.
Aqui vão alguns exemplos de momentos em que usamos (ou podemos usar) essas ferramentas no dia a dia:
- Gerar rascunhos de notícias hardnews, que são aquelas que precisam ser postadas de imediato, ou com informações de ampla replicação, sem exclusividade entre um veículo ou outro. Exemplo: reunir resultados detalhados do Eurovision ou outros festivais;
- Organização estética, como por exemplo neste post. A criação manual da lista dos participantes, e da forma que foi feita neste texto, levaria mais de uma hora, o que é desnecessário.
- Conversão dos nossos textos do site em legendas para as redes sociais (e vice-versa);
- Correção textual de diversos níveis, como melhorias gramaticais, de clareza e sentido;
- Desenvolvimento de ideias e brainstorming para conteúdos de diversos formatos;
- Criação de memes e montagens, deixando claro que a produção é uma sátira e não reproduz a realidade.
O que NÃO podemos fazer com a IA:
- Criar notícias aleatórias e postagens inteiras sem a supervisão de um profissional;
- Criar textos opinativos como listas e resenhas, que substituam o que o jornalista pensa por um posicionamento genérico;
- Criar produtos que alterem a voz ou atributos de uma pessoa sem que se deixe implícito de que se trata de uma montagem.
A maior regra, e que é consenso em todas as redações jornalísticas, é essa: um produto feito com auxílio de IA (ou qualquer outra ferramenta) jamais poderá ser publicado sem a checagem de um profissional, em hipótese alguma.
O Kolibli novamente se solidariza com as vítimas inocentes de cada lado do conflito, mas também se posiciona em favor do direito de existência do povo palestino, que sofre com a tentativa de limpeza étnica em sua região desde a criação do Estado de Israel.
Editorial assinado por toda a equipe do Kolibli.
Obrigado! Admiro muito o trabalho feito por vocês.
Super necessário esse texto!
Cada vez mais o Koli se mostra ético e consciente das próprias limitações do Festival!!