Após quase dois anos marcados por singles que ficaram entre o inofensivo (como “Me Gusta”) e o medíocre (como o reggaeton “Loco”), Anitta entrega em “Girl From Rio” algo que se espera de uma artista do tamanho dela. A canção precede um álbum de mesmo nome – o primeiro da cantora com o selo americano da Warner – e que deve ser lançado entre setembro e dezembro deste ano.
Antes de falar sobre os aspectos musicais de “Girl From Rio”, é interessante contextualizar o espaço que Anitta ocupa atualmente. Perto de completar 10 anos de carreira, ela é indiscutivelmente o maior fenômeno pop do Brasil neste século, gostando dela ou não. Nenhuma cantora tem a mesma magnitude, regularidade nas paradas de sucesso e, ao mesmo tempo, capacidade de polarizar a opinião pública em torno de suas ações. Antes criticada pelos fãs por ser politicamente isenta demais, hoje ela trava guerras contra deputados, ministros e até o Presidente da República. Se parte da esquerda ainda torce o nariz para a cantora, a direita bolsonarista tem Anitta como um alvo por conta de seus posicionamentos anti-governo e comportamentos pouco conservadores na vida pessoal (como a história da tatuagem no ânus).
Se vc conseguir demonstrar, sem ajuda de outra pessoa, que sabe quais são as capitais do Brasil ou pelo menos os nomes dos seis biomas brasileiros a gente começa conversar…. https://t.co/d7yCNLtPgv
— Ricardo Salles MMA (@rsallesmma) April 21, 2021
Anitta x Ministro do Meio Ambiente: uma guerra em tweets
Estes aspectos ajudam a formar uma espécie de “jornada do herói” artística, onde certos músicos acabam eternizados por conta de suas trajetórias cheias de histórias a contar, sejam negativas ou positivas. Cada fato novo de Anitta é uma página a mais em uma biografia que já é repleta de coisas interessantes. Entretanto, é preciso que a música caminhe junto com estas ações grandiosas.
Anitta já entregou projetos memoráveis como o álbum “Bang” e a música “Vai Malandra” – ou até mesmo a excentricidade trilíngue “Bola Rebola” – mas muitas vezes cai em modelos preguiçosos. Como qualquer artista que busca ser um dos nomes do mainstream internacional, Anitta acaba muitas vezes se submetendo às regras de “como a banda toca”, mas o mandamento que vem antes de todos os outros é: se destaque. É preciso colocar o seu “jeitinho”, mesmo que sonoramente os projetos pareçam com outros que já bombam atualmente. Por que ouvir uma cópia de Cardi B, Ariana Grande ou Billie Eilish se já temos as próprias?
Em “Girl From Rio”, Anitta entende perfeitamente essa pergunta e entrega um pop rap nos moldes do que se ouve atualmente, mas sob um ponto de vista notoriamente dela. Ao invés de usar o funk, a cantora aposta em um trap com sample de “Garota de Ipanema” – a música brasileira mais famosa de todos os tempos – como forma de estabelecer uma ponte entre a memória dos gringos sobre o Brasil e a atualidade. E não só isso: apesar de não ter nada de novo em uma releitura do clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que é uma das canções mais regravadas da história, existe uma lógica de subversão na escolha da canção como sample. É preciso reconhecer a coragem de Anitta em mais uma vez mexer no vespeiro formado pelos eruditos e defensores dos bons costumes na música brasileira.
A bossa nova, nosso maior gênero de exportação, representa um Rio de Janeiro muito parecido com o das novelas: a cidade do Leblon e do calçadão de Copacabana. O Rio de Anitta é do povão, do Piscinão de Ramos (como retratado no clipe), das favelas, da pobreza, da liberdade sexual e do bronzeado. Nos primeiros versos, ela convida o ouvinte a conhecer esse “Rio diferente, que é de onde ela é”, para então colocar histórias pessoais, como a descoberta de um irmão novo e a vida amorosa conturbada. Ela também exalta a diversidade das mulheres cariocas, com “linhas bronzeadas” e “grandes curvas”, afirmando que “você vai se apaixonar pela menina do Rio”.
A pronúncia em português do “real” e outros clichês da cantora, como a constante lembrança do bairro Honório Gurgel, podem ser recebidas como constrangedoras pelos conterrâneos que não são tão investidos na vida pessoal de Anitta. Entretanto, as escolhas artísticas feitas na música fazem sentido quando se entende que o foco não é mais o público brasileiro. A presença do inglês serve como prova disso, já que ele gera uma ruptura com um país que tradicionalmente não abre mão de músicas cantadas em português. A cantora está, possivelmente pela primeira vez, investindo em expor suas vivências para pessoas que não conferiram suas séries no Netflix ou os nossos Instagrams de fofoca. Agora para refletir: será que, por exemplo, o povo colombiano sentiu vergonha ao ouvir Shakira cantar sobre Barranquilla, sua cidade natal? Acredito que não.
“Girl From Rio” é um pontapé inicial que merece aplausos pela autenticidade trazida por Anitta, mas esperamos que não seja o fim. O próximo álbum será formado apenas por canções em inglês e espanhol (e sabemos que a voz dela não soa tão especial no idioma de Kamala Harris), então cruzaremos os dedos para que a cantora continue misturando mundos sonoros e imagens honestas do que ela é. Não queremos uma nova Dua Lipa pois já temos uma. Queremos a primeira Anitta.
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2 thoughts on “Em “Girl From Rio”, Anitta entrega a ousadia que sempre se espera dela”