Por conta da escalada na pandemia de Covid-19, a EBU (União Europeia de Radiodifusão) precisou cancelar o festival Eurovision pela primeira vez desde 1956, ano de sua criação. A medida pode ser considerada como um símbolo da derrota do continente europeu para a doença, ainda que essa seja só uma das etapas na longa guerra contra o coronavírus. Embora acreditemos que a decisão correta foi tomada, o Kolibli lista algumas reflexões que tornam o cancelamento do festival algo extremamente incomum e lamentável:
Sempre controverso, mas imparável
O Eurovision surgiu em 1956 como uma forma de unir os europeus, que ainda devastados pela memória recente da Segunda Guerra Mundial, precisavam de um programa “light” de entretenimento. A fórmula do festival mudou diversas vezes ao longo dos anos, mas hoje consiste em uma competição, onde cada país é representado por uma música que disputa a atenção de público e júri especializado durante um show de quase 4 horas. O país com o maior número de pontos é declarado vencedor e ganha o direito de sediar o festival no ano seguinte.
Por conta de sua abrangência entre os países (em 2019, 41 participaram) e audiência que chega próximo à casa dos 200 milhões de espectadores, o Eurovision envolve muita grana (sediar custa em torno de 20 a 30 milhões de euros) e dor de cabeça. Mesmo com países-sede em conflito ou lidando com problemas financeiros, como aconteceu com Israel em suas edições e Ucrânia em 2017, o festival nunca deixou de acontecer. Quando Israel se recusou a sediar em 1980, alegando falta de investimentos após vencer o Eurovision pela segunda vez seguida, a EBU conseguiu arrumar um plano B (e não foi a primeira vez). Até guerras aconteceram entre os países participantes durante estes anos de estabilidade, que por ventura resultaram em boicotes e abandonos, como no conflito entre Rússia e Ucrânia em 2014 e a desistência ucraniana no festival seguinte, mas nada que pudesse acabar com a atração como um todo. Aliás, de volta ao festival em 2016, a Ucrânia participou do Eurovision com a polêmica canção “1944” e venceu com acusações de que a música seria uma indireta para a Rússia, o que é proibido pelas regras, mas a EBU permitiu a participação alegando não ter encontrado mensagens políticas.
Com todo esse histórico, só a emergência sanitária de uma pandemia conseguiria parar o Eurovision em sua 65° edição. A EBU não encontrou mais alternativas, já que faz parte do festival a sua essência “ao vivo” e um show sem plateia não seria adequado; pela incerteza de um possível adiamento e por conta das normas de distanciamento e isolamento recomendadas pela OMS e governos, que poderiam inviabilizar a tentativa de criar um show feito só com os artistas. Com mais de 400 mil casos e quase 25 mil mortes, a decisão é amarga, porém correta, e os europeus provavelmente não ficarão sem um gostinho da experiência eurovisiva em maio.
E agora? Como fica a sede de 2020?
Com a vitória da canção “Arcade” de Duncan Laurence em 2019, a Holanda viveu, desde então, o sonho de sediar um Eurovision pela primeira vez em 40 anos. Assim que o cancelamento foi anunciado, o planejamento de meses foi jogado no lixo (mas ainda pode ser reciclado caso a sede se mantenha). Como dito anteriormente, não é barato tirar o festival do papel. A NPO, estatal holandesa envolvida na organização, calculou que o evento custaria ao menos 26,5 milhões de euros (aproximadamente 147 milhões de reais). Os gastos envolvem a locação da arena, construção do palco e qualquer outro tipo de despesa relacionada com a organização. A prefeitura de Roterdã assegurou que deseja sediar o festival em 2021, mas precisaria de 6 milhões de euros adicionais para a “segunda versão” do Eurovision holandês.
Outro problema relacionado ao cancelamento é a logística com os fãs. A organização se preparava para liberar o terceiro lote de ingressos para os ensaios, semi-finais e final no dia 26 de março, mas agora estuda qual seria a melhor forma de retornar o que foi gasto (devolvendo o dinheiro, assegurando o ingresso para o ano seguinte ou ambos). O certo é que a grana precisa ser devolvida ao consumidor de alguma forma, já que os ingressos do primeiro lote, por exemplo, iam de aproximadamente 103 a 1450 reais (cotação de 31/03).
E por fim, a decepção de artistas e emissoras
Se o Eurovision é um grande negócio em números, o mesmo acontece com os países participantes. Portanto, se um cancelamento ocorre, não são só os organizadores que sofrem: os países e suas emissoras também arcam com prejuízos (sem contar a frustração dos artistas, já que o festival exige meses de preparação).
O esforço econômico e simbólico de cada país participante varia muito e depende principalmente de como as canções foram selecionadas para participar no Eurovision. Essa decisão é feita exclusivamente pela emissora pública nacional associada à EBU, cabendo a ela resolver se abre ao público a chance de escolher ou não. Se o Brasil participasse, por exemplo, provavelmente caberia à TV Cultura organizar algum tipo de seleção musical para escolher um artista para o Eurovision. Dos 41 países participantes nesse ano, 24 escolheram abrir ao público algum de tipo de escolha, sendo ela a música ou o artista.
Dito isso, a questão que fica é: o que dizer para um artista, que passou por seleções internas ou públicas, as venceu, e agora não pode ter a chance de apresentar sua canção para uma grande audiência? Claro, não é o fim da carreira de ninguém, mas a exposição é bastante importante para novos cantores. Dificilmente um êxito no Eurovision possibilita uma ascensão internacional, mas ajuda muitos artistas a se fortalecerem nacionalmente, sem precisar necessariamente do apelo de uma grande gravadora.
A lógica apoiada por muitos eurofãs é a de que as emissoras confirmem os mesmos artistas desse ano para o festival em 2021, mas não é tão fácil assim. Por exemplo, nos países nórdicos, onde o Eurovision é quase um esporte nacional, existem tradicionais festivais de escolha para o evento, como o sueco Melodifestivalen (que revelou ABBA e Loreen à competição) e o norueguês Melodi Grand Prix, que levam em sua história décadas de existência e audiência altíssima. Entram, dessa forma, duas maneiras de se problematizar a situação.
A primeira: como estes países cancelarão um evento de grande história e âmbito nacional, colocando a mesma artista do ano passado, por conta de uma fatalidade? A segunda: se essas emissoras ficam do lado dos artistas que perderam a chance de performar em 2020 e dão o tíquete eurovisivo para o ano seguinte, que chances o país estaria dando para todos os outros artistas, que agora, só poderão tentar uma participação no Eurovision em 2022? Tentando conciliar os dois lados, por exemplo, o Eesti Laul (seletiva da Estônia) assegurou ao cantor Uke Suviste um lugar na semifinal do festival nacional do próximo ano e manteve outras vagas para novos artistas. Seria esta a forma mais correta de se lidar com a situação?
Para finalizar, a maior de todas a ironias desse ano é também um bônus de decepção para alguns países: os dois favoritos à vitória em Roterdã, Bulgária e Lituânia, jamais venceram o festival. O terceiro colocado nas apostas, Suíça, não sedia o Eurovision há 30 anos. Toda essa situação é uma prova de que as coisas muitas vezes não funcionam como manda o planejamento, mas o que importa agora é a saúde de todos nós, deixando que a música ajude a curar as feridas da humanidade como sempre fez, mesmo que agora de outras formas.
3 thoughts on “Por que o cancelamento do Eurovision é uma das maiores derrotas do continente para o coronavírus”