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Carta que escrevo para abrir os trabalhos relacionados ao #2022InReview, a retrospectiva musical do Kolibli

 

Sempre tive a ideia de iniciar as retrospectivas do Kolibli criando um texto que dê um panorama geral do que foi o ano. Por coincidência infeliz, tomei esta iniciativa logo em um dos piores que vivenciei musicalmente. Ao menos, desde o momento em que comecei a escrever sobre música (ainda na minha adolescência, lá em 2011). 

O clichê “todo ano tem muita coisa boa” é verdadeiro e eu concordo com ele, pois não haveria sentido em perder tempo criando estes especiais, mas 2022 deixou muito a desejar. 

Antes de começar a listar os motivos, é preciso ser honesto: este também não foi um dos melhores anos no meu âmbito pessoal e por isso não consegui me entregar ao Koli como gostaria. Nisso se incluem as pesquisas musicais, a criação de posts e muito mais. Como eu não vivo com o que ganho do site (que apesar das propagandas, ainda é nada), não posso ter o rigor produtivo de alguém como Anthony Fantano ou um jornalista da Pitchfork. Sendo assim, meu radar é falho, ainda que possa ser maior que o de boa parte dos leitores do site. O período de criação das retrospectivas é um processo engenhoso de quase um mês em que tento ao máximo diminuir essa desvantagem em relação a outros espaços. 

Produzir um jornalismo musical com enfoque global é algo que amo pois, ao contrário dos veículos que acabo de citar e de tantos outros, não aceito agir como se só existisse arte no mundo ocidental. O esforço da grande mídia em repercutir projetos de fora deste eixo cresce cada vez mais, mas ainda é como se fosse por cotas. Sempre gostei de conhecer outras culturas – algo que viria a influenciar o meu gosto musical – então não faria sentido repercutir as mesmas coisas que todo mundo já faz. Sou de um país de terceiro mundo (mas com diversidade artística de primeira) e acho necessário criar um espaço cada vez mais globalizado para a crítica musical. 

Terminada a rasgação de seda pessoal (momento LinkedIn), reitero mais uma vez que meu trabalho é imperfeito, mas ter um enfoque editorial como o do Koli faz tudo ser ainda mais desafiador. Não tenho como trazer relatórios com grande autoridade sobre como foi o ano musical de mais de 200 países e territórios do mundo, mas tento ficar de olho no que há de principal. Feita a explicação, aqui vão algumas das minhas considerações que explicam o porquê de 2022 ter sido um ano medíocre, mas com esperanças para 2023.

Vivendo de passado, os Estados Unidos se encontram em grave crise musical que reverbera em todo o mundo

Após mais de 30 anos de lançamento, Kate Bush recoloca “Running Up The Hill” nas paradas musicais. Foto: Reprodução.

Paladinos da moral e dos bons costumes culturais pelo mundo, os estadunidenses tiveram um ano tão assustador que até acende um alerta vermelho para todos nós. Ao analisar a lista de músicas mais ouvidas de 2022 na plataforma de streaming Spotify, percebe-se que o país virou um cemitério de novas ideias. A mais ouvida do período é “As It Was” do britânico e ex-One Direction Harry Styles, que é quase um cover (mas um bom cover) do lendário hit “Take On Me” (1985). Em segundo lugar, “Heat Waves” dos também britânicos do grupo Glass Animals. A música originalmente foi lançada em 2020, mas se tornou um imenso sleeper hit no final do ano passado. 

Steve Lacy, que é o estadunidense mais bem colocado (3° lugar) entre os mais ouvidos, também suscita uma tônica de “isolamento” com o bedroom pop de “Bad Habit”. Casos assim são comuns na indústria, mas também representam um padrão que marcou o ano dos yankees: a repetição.

Como se ainda estivessem anestesiados por um clima pós-pandemia, os Estados Unidos passaram a sensação de que as cabeças pensantes da indústria decidiram entrar em greve. O aplicativo TikTok e novas séries da Netflix fizeram com que um número expressivo de músicas antigas voltassem às paradas, como “Running Up That Hill” (1985)  de Kate Bush ou, recentemente, “Bloody Mary” (2011) de Lady Gaga. E também “Lost” (2012), “Heartless” (2008), “Die for You” (2016). No clima de reciclagem, grandes álbuns e novos protagonistas foram quase inexistentes, como o “Renaissance” da já veterana Beyoncé. 

Com a fraqueza dos estadunidenses, latinos ganharam ainda mais espaço 

Como em um clima reverso de Primeira Guerra Mundial, a decadência musical dos estadunidenses gerou oportunidades para outras culturas. O mundo latino, por exemplo, segue sendo um grande exportador de criatividade e teve um ano de exceção com o sucesso do porto-riquenho Bad Bunny. Seu último álbum (“Un Verano Sin Ti”) passou 13 semanas em primeiro nos Estados Unidos e colocou múltiplos hits na Hot 100, algo pouco usual para o país apesar de contar com uma comunidade latina enorme. 

Karol G, Farruko, Manuel Turizo e até mesmo a nossa conterrânea Anitta fizeram grandes voos não só pelo Tio Sam, mas em todo o mundo. Talentos distintos como Nathy Peluso e Rosalía (eu sei, ela não é latina) seguem fortes e apontam para um futuro que as reserva mais triunfos do que uma participação com Bizarrap ou a tropical “Despechá”, respectivamente.

Até a ponta mais fraca dos latinos neste ano, que no caso é o Brasil, conseguiu espaço internacionalmente. Mesmo sem grandes álbuns e com um cenário pop mais idiota e redundante do que nunca (não é mesmo, Pedro Sampaio e Luisa Sonza?), ainda assim tivemos coisas a comemorar. 

Por mais que Anitta diga que o filho é dela, a difusão do funk pelo mundo vem crescendo organicamente com o TikTok e teve uma ajudinha da Seleção Brasileira. Músicas como “Tubarão Te Amo” e “Parado No Bailão” (essa não é tão nova) viralizaram na rede social e fizeram com que os gringos imitassem os nossos movimentos e batalhas de dança.

No cenário nacional, destaco a vitória de Filipe Ret em Álbum do Ano no Prêmio Multishow deste ano (apesar do “Lume” ser bem mais ou menos) como um símbolo de que o mainstream brasileiro cada vez mais abraça o trap e, novamente, o rap nacional. No Spotify, o projeto teve a 3° melhor estreia mundial em sua semana de lançamento. Quanto mais diversidade, melhor.

Africanos e coreanos também ganham espaço

O histórico quarto lugar de Marrocos na Copa do Mundo pode servir como retrato de um continente com muito potencial a ser revelado. No Norte da África, o Spotify já é um serviço bem estabelecido e impulsiona o pop que geralmente vem dos marroquinos para todo o Mundo Árabe. Pela região subsaariana, a África do Sul segue ávida em exportar o seu amapiano assim como a Nigéria faz com o afrobeats e suas estrelas. De grande exemplo, fica Ckay com “Love Nwantiti” (1° lugar na França) e Burna Boy com “Last Last” (4° no Reino Unido).

Para os coreanos, 2022 foi um ano que seguiu solidificando o K-pop como mais um gênero habitual na música global (afastando a alcunha de “tendência”). Grandes momentos como Jung Kook (membro do BTS, rest in peace) na cerimônia de abertura da Copa cantando um tema oficial do torneio ou os números exorbitantes do Blackpink em seu novo álbum servem como prova. Só mesmo a meme-star brasileira Chuu conseguiu sair no vermelho neste ano.

Por fim, considerações sobre um dos temas centrais do site: o Eurovision deste ano

Se nem nós terríveis anos 2000 o Eurovision perdeu a graça, não seria agora que isso iria acontecer. Mas a edição de 2022 decepcionou em vários quesitos.

Fazia tempo que não víamos um país-sede com tantos problemas como a Itália e que pela rica história no evento deveria justamente provar o contrário. É a nação criadora do Festival de Sanremo, competição que segue acontecendo até hoje e que deu as bases para que se desenvolvesse o Eurovision. Nas mãos da RAI (emissora responsável pelo festival na Itália) e da nova direção da EBU (União Europeia de Radiodifusão), o Eurovision involuiu em relação à excelente edição de 2021 (que para sermos justos, teve dois anos para ser produzida). 

Já na preparação, muitos veículos, jornalistas e blogueiros tiveram as credenciais restringidas ou negadas até mesmo na sala de imprensa on-line (a do Koli foi negada na velocidade da luz). 

A “mídia” que cobre o Eurovision é muito distinta em relação a de outros eventos. Isso se dá, sobretudo, pela facilidade de fazer com que pessoas sem ligação alguma com a função estejam lá para tietar os artistas. Mesmo assim, nada justifica as coletivas vazias para receber os principais atores do evento musical mais assistido no mundo.

Na técnica, mais problemas. O principal deles tem a ver com o palco, que no projeto parecia ser ambicioso com o destaque para uma espécie de sol giratório, mas não deu certo. A estrutura começou a ter dificuldades para funcionar na fase de ensaios e foi vetada para uso das equipes participantes, que haviam planejado suas performances durante meses pensando em um cenário que na prática foi diferente. No fim, vimos um show deficiente ofuscado por um trambolho preto semicircular disposto no palco e LEDs que pareciam vir de algum Eurovision da década retrasada. 

Além do amadorismo em algo tão primordial, o bom senso estético também não foi o forte dos italianos. Os postcards, que são os vídeos que apresentam os artistas do show e servem como breve intervalo para que as estruturas de cada performance sejam montadas e desmontadas, foi digno de se rir para não chorar. O mascotinho Leo, que é um drone, passeava por locais da Itália e projetava fotos e um vídeo dos músicos que viriam a seguir. Além da tosqueira conceitual (veja você mesmo), é preciso dizer que ninguém se importa muito em ver pontos turísticos de um dos países mais conhecidos do mundo justo na hora do Eurovision. O Azerbaijão até tem essa permissão, mas a Itália?

No que não está na alçada da organização italiana, mais coisas a serem criticadas. O nível das músicas em 2022 – que apesar de ser subjetivo – caiu muito em relação ao ano anterior. Após o fim do evento, escândalos envolvendo as votações de vários países foram revelados. Ao menos tivemos um bom vencedor que infelizmente não poderá sediar o evento, primeira ocasião do tipo em 43 anos.


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Sobre o autor

Matheus Rodrigues

Jornalista formado em 2023 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Apaixonado por música, culturas diferentes, futebol e Coca Zero. Obcecado por Eurovision e pop do leste europeu. Torcedor do imenso Sport Club Internacional.
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