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Um dos nomes mais interessantes do pop russo-ucraniano, Nadya Dorofeeva apresentou seu primeiro álbum solo, “сенси” (em português significa “sentidos”), em um contexto pouco confortável. Primeiro, pela separação de seu marido Vladimir Dantes (um casal de magnitude Zé Felipe/Virginia na Ucrânia, com a exceção de que os europeus de fato são talentosos). Segundo, pela inescapável realidade da guerra em seu país, que fez com que a cena do mainstream no Leste Europeu entrasse em colapso. 

A esse ponto, pode se tornar repetitivo lembrar do conflito entre Rússia e Ucrânia ao falar de todos os lançamentos que vêm de lá, mas é necessário. Todos os grandes artistas, de ambos os lados, perderam ao menos um pouco no dia em que Putin decidiu invadir o país vizinho. Dorofeeva vinha preparando um álbum de estreia para fevereiro, com músicas que muito provavelmente eram em russo, e teve que jogar tudo no lixo. Não é como se ela fosse alheia a performances e músicas no idioma, já que Dorofeeva ficou famosa pela participação na dupla Vremya I Steklo fazendo exatamente isso. Presença dominante na década passada, Dorofeeva e Positiff construíram o que com certeza foi um dos atos de maior sucesso na história do pop russo. Entretanto, preterir a língua ucraniana em um contexto de guerra e nacionalismos exacerbados não parece ser uma boa ideia. 

Nas repúblicas que formavam a antiga União Soviética (sobretudo Rússia e Ucrânia), a língua franca é o russo e na indústria musical isto não seria diferente. Entretanto, o governo ucraniano há alguns anos tem feito esforços para aumentar a influência da língua nacional no país (a tal “desrussificação”). Desde o início da guerra em larga escala no início deste ano, os artistas pró-Ucrânia sentem uma “pressão” para cantar em ucraniano ou evitar seus hits em russo, que é visto como mais um símbolo do país agressor.

Com um contexto destes, é meio difícil pedir a Dorofeeva ou qualquer outro artista ucraniano que coloque algum tipo de excelência artística em primeiro lugar. No caso dela, ainda mais, já que ela é natural da Crimeia, região anexada por Putin em 2014, e ainda tem familiares por lá. 

O que move “сенси” é um desejo comum a outros artistas de porte semelhante ao dela: seguir em frente. E isso significa construir um repertório que seja palatável para ucranianos, tarefa que Dorofeeva tirou de letra para um trabalho “inesperado” como esse. A primeira medida tomada foi a criação de uma versão ucraniana para o primeiro single “raznotsvetnaya”, que acabou virando “різнокольорова”. Dorofeeva promoveu até mesmo uma espécie de concurso cultural para escolher a melhor tradução, que hoje a fez sentir que “a música nasceu para ser assim”.

Seja qual for o idioma, “різнокольорова” é um dance-pop nos moldes mais “eletrônicos” que com certeza estariam no catálogo de um pessoal como Disclosure ou Calvin Harris. O amor multicolor, como diz o nome da música em português, é bem representado e soa muito atual e alinhado com a atitude mais ousada de Dorofeeva.

Um dos problemas visíveis na transição do projeto é o fato de que este é um momento de luto (e luta) para os ucranianos, então não seria tão adequado fazer um disco só com faixas uptempo. Assim, se torna inevitável não cair no lugar comum de muitos artistas ucranianos que é: tratar da guerra e do patriotismo com baladas. Dorofeeva não foi exceção, mas o realizou de uma forma que se alinhasse ao seu estilo. A segunda faixa, “У твоїй душі” é quase como uma desconstrução de “різнокольорова” em torno de algo mais sóbrio e triste. Na música (e no videoclipe) fica claro que Dorofeeva trata do sentimento de pertencimento ao lar mesmo que se esteja distante.

Minha casa está na sua alma

Abra, estou na chuva

Meus olhos estão na água

Meu coração está quase vazio

“Думи”, dueto em parceria com Artem Pivovarov, é a música de maior sucesso no projeto até agora (e com razão). A faixa foi criada a partir de um poema do escritor Taras Shevchenko, que é considerado o maior escritor da literatura ucraniana. Com um toque folk muito delicado e vocais em sintonia de ambas as partes, “Думи” serve como um tributo muito bonito dos artistas aos seus conterrâneos sem soar cafona ou apelativo.

Ao ouvir o álbum “сенси”, é difícil não gostar de cada uma de suas músicas. O que evita um apego maior ao projeto é o seu formato: tem 22 minutos; 10 faixas, sendo 3 já conhecidas, 3 interludes, 1 remix (que é bem desnecessário)… Repito que se entende o motivo do álbum de estreia de Dorofeeva precisar vir desta forma, mas ele se torna um pouco refém da própria ambição. As transições, que contam com trechos de programas que ela já participou (e até um áudio mais direto sobre a guerra), são interessantes, mas passam uma ideia de profundidade que infelizmente não há. É como fazer uma pomposa apresentação de Powerpoint com efeitos especiais para uma palestra de três minutos.

De grande prova fica o cover da canção “люди як кораблі” do famoso grupo Skryabin, que mesmo sendo satisfatório, soa menos engenhoso do que o resto do projeto. É um karaokê-homenagem de Dorofeeva ao vocalista Andriy Kuzmenko, que morreu em 2015 e ganhou nova vida neste período difícil para os ucranianos. Aqui, entretanto, parece mais como um oportuno momento para a cantora rechear a setlist dos shows com músicas que não sejam em russo. O toque de mestre que reverte um pouco desta sensação fica com a interlude “шанси”, que precede o tributo com um trecho do próprio Kuzmenko introduzindo Dorofeeva em um programa de talentos com o mesmo nome. Lembra as inserções de Beyoncé no seu álbum homônimo (2013), mas ao contrário da estadunidense as ilustrações levam a poucos lugares.

O engraçado é que o EP Dofamin (2021), que já foi avaliado aqui no site, soa mais como um projeto completo do que o álbum de estreia (tem apenas cinco minutos a mais de duração). Mas note que estas críticas ao “сенси” passam mais como um lamento pelo que poderia ser, já que a cantora mostrou mais uma vez bom senso estético, de composição e atitude. O presente já é legal, mas o futuro segue muito promissor para Nadya Dorofeeva.

“сенси”, Dorofeeva – 8/10
País: Ucrânia
Para quem gosta de: dance-pop, pop ucraniano.
Comece por: “різнокольорова”

Melhores músicas: “різнокольорова”, “крапають”, “крапають”, “у твоїй душі”.
Piores músicas: “різнокольорова – PROBASS ∆ HARDI Remix”

 

 

 


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Sobre o autor

Matheus Rodrigues

Jornalista formado em 2023 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Apaixonado por música, culturas diferentes, futebol e Coca Zero. Obcecado por Eurovision e pop do leste europeu. Torcedor do imenso Sport Club Internacional.
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